Friday, September 08, 2006

Carta aberta a um intelectual

Caro Alexandre Nunes Oliveira,

Antes de mais, gostaria começar esta carta com quatro notas prévias:

1) dou-me ao trabalho de escrever-te apenas pelo facto de te saber amigo de uma pessoa por quem tenho grande estima e consideração. Não fosse esse o caso, garanto-te que o tom inflamado da tua resposta não me mereceria qualquer tipo de comentário, tamanha é a disparidade de registo entre o que ambos escrevemos;

2) o facto de te escrever não tem por base o desejo de alimentar qualquer tipo de polémica: não tenho tempo, vontade ou disponibilidade mental para esgrimir retóricas. Por isso, após o envio desta carta, darei por encerrado qualquer tipo de argumentação sobre este episódio;

3) perante a contundência dos teus comentários, senti-me no direito de – para além de te enviar esta carta – publicar a minha resposta no blogue. Numa primeira fase, tinha dito que iria tratar o assunto em privado, mas o tom insultuoso com que me interpelaste fez-me mudar de ideias;

4) a acentuação que usaste por duas vezes na palavra conteúdo está incorrecta: escreve-se “conteúdo” e não “contéudo”. Se achares que esta falta de preciosismo faz de ti um ignaro, devolvo-te o rótulo. Se a entenderes apenas como um mero lapso, então aqui fica a correcção;

Posto isto, vamos então ao que interessa...

O ‘post’ intitulado «A dimensão cósmica da minha ignorância» teve por base dois princípios: o primeiro, como poderás confirmar pelo título e pelo que escrevi ao longo do texto, foi a simples constatação da minha ignorância quanto às virtudes do cinema contemporâneo russo; o segundo, foi ‘brincar’ com aquilo que considero ser um mau trabalho jornalístico.

Quanto ao primeiro ponto, creio que não há muito a dizer. Ou seja, eu (o ignaro), não conheço o cinema russo da actualidade e fiz uma tentativa de iniciar-me na matéria através da leitura da tua entrevista a Sokurov. Posteriormente, eu (o mesmo ignaro) cheguei à conclusão de que a leitura da tua entrevista não seria a melhor das portas de entrada para conhecer o homem, o realizador e a obra. Subsequentemente, eu (ainda e sempre o ignaro), decidi relatar a história do meu insucesso. Parece-me pacífico...

No que respeita ao segundo ponto, reconheço que o meu texto possa não ter sido suficientemente claro para transmitir a ideia que esteve na génese da paródia à entrada que antecede a tua entrevista. Porque, de facto, faltou-me explicar que, na minha opinião, a elaborada prosa com que nos presenteias antes de debitar a primeira pergunta é, no fundo, e jornalisticamente falando, uma valente merda. E digo jornalisticamente falando, porque tu apresentas e defendes o texto como “um artigo”. Assim sendo, é dessa forma que ele deve ser avaliado.

E porque é que eu digo, então, que aquilo é uma valente merda? Porque o registo desmesuradamente elogioso que pauta o texto, coloca imediatamente de parte, um a um, todos os princípios de isenção, rigor, distanciamento e imparcialidade que devem reger não só a escrita de um texto jornalístico, mas também a relação de um entrevistador com o seu entrevistado.

No panorama jornalístico este é, de resto, um problema cada vez mais comum. Mas a verdade é que o fenómeno tem sempre tendência a agravar-se exponencialmente na esfera do ‘jornalismo cultural’. Há quem diga que isso se prende com o facto de os jornalistas de cultura serem, no fundo, potenciais artistas que nunca conseguiram livrar-se do estigma e da frustração de nada terem feito em prol da arte. Consequência: vingam-se nos artigos que escrevem, entretendo-se em prolongados exercícios pseudo-literários e massacrando os leitores com demonstrações de habilidade absolutamente parolas.

É raro, por exemplo, ler um artigo sobre um concerto, um filme ou uma exposição que não tenha por eixo aquilo que o jornalista “acha”. E, pior, depois de o jornalista “achar”, entretém-se a divagar sobre o porque é que ele “acha” e a justificar o porquê de “achar” isso. Mete-se pelo meio aquilo que os outros – os “especialistas” – acham, contextualiza-se todo este “achismo” numa determinada corrente, compara-se com os que pertencem a essa corrente ou a outras correntes, diz-se o que é que se “acha” disso e... pronto! Está feita a peça...

E isso, meu caro, é triste. Primeiro, porque quem compra um jornal deve ter direito a formular a sua opinião com base em informação factual e não em informação subjectiva. Segundo, porque informação e opinião devem ser coisas perfeitamente distintas e como tal assinaladas, para não enganar quem lê. Terceiro, porque infelizmente a esmagadora maioria dos nossos ‘jornalistas de cultura’ não consegue tirar os olhos do umbigo ou escrever para além do círculo de leitores formado pelas tertúlias que frequenta.

É nesse âmbito que eu não posso deixar de considerar hilariante a leitura de frases como «superior estilista do cinema contemporâneo», «demiurgo de uma experiência filmíca totalmente inovadora, mesmo nos círculos mais alternativos», ou «personalidade única e absolutamente singular, autor de um cinema contemplativo, filosófico, profético e de autênticas dimensões cósmicas». Jornalisticamente falando, pior do que ler isto, só mesmo o facto de colocares estas frases na boca de «especialistas» que nem te dignas a identificar.

Feita esta (longa) exposição sobre os motivos que me levaram a brincar com a tua entrevista, coíbo-me de aprofundar quaisquer considerações acerca da tua lamentável dissertação sobre as idiossincrasias do Portugal medíocre e dos pobres coitados que o habitam. Quem se arroga o direito de se colocar num patamar de superioridade intelectual e de julgar os restantes como pessoas que devem “instruir-se e elevar-se mais” não merece mais do que um sorriso misericordioso como resposta.

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